Meu Senhor e meu Deus

        O Domingo que conclui a Oitava da Páscoa é atualmente o domingo da misericórdia, antigamente chamado domingo in albis, pois aqueles que tinham recebido o batismo na celebração da Páscoa, participavam das comunidades vestidos de branco e no domingo após a Páscoa, vinham depositar suas vestes diante do altar. Já São João Paulo II institui o Domingo da Misericórdia, que, segundo a inspiração de Santa Faustina, a experiência da Páscoa, uma vez que Jesus morreu na cruz, foi sepultado, ressuscitou e está vivo no meio de nós, é uma manifestação clara da Misericórdia de Deus. Há tempos que a Igreja, através de vários momentos, vem falando dessa misericórdia de Deus, mas nos últimos tempos vem falando de forma mais constante e direta sobre o tema, seja através de documentos papais, encíclicas, o lema escolhido pelo papa Francisco para seu ministério pontifício, o ano da misericórdia, manifestando a necessidade que a Igreja tem, inspirada por Deus, de falar da misericórdia de Deus. Colocamos hoje nas mãos do Senhor tantas pessoas que passam por tribulações, dificuldades, sofrimentos, que deixaram de acreditar, estão desalentadas e não se abrem mais para a experiência da misericórdia do Senhor. Cabe a nós, enquanto cristãos, celebrando a Páscoa da Ressurreição do Senhor e vivendo o tempo Pascal, ser transfigurados por esta realidade carregada de sentido que é a Misericórdia de Deus.
        A liturgia deste segundo domingo da Páscoa nos apresenta a importância de celebrar o primeiro dia da semana, o domingo. O Evangelho nos apresenta esse processo de encontro com o Senhor, justamente no primeiro dia da semana. A visão do Apocalipse também proclama o primeiro dia da semana, esse ritmo semanal de celebração da Páscoa e de encontro com o Senhor. Os discípulos passam então a reunir-se no primeiro dia da semana e nessa celebração se encontram com o Senhor. Tal costume vai marcar a importância da celebração dominical vivida na tradição da Igreja desde a época dos apóstolos.
        A primeira Leitura (At 5, 12-16), demonstra como a Ressurreição e a união a Jesus produzem frutos em meio ao povo: sinais e maravilhas são operadas por meio dos apóstolos. A abundância da graça e Deus marca a narrativa: muitos sinais e maravilhas, o número de fiéis que crescia, multidões que vinham a Jerusalém e que eram curados. Só uma narrativa quase épica pode nos aproximar da abundância da graça e das maravilhas de Deus.
        O Salmo responsorial (Sl 117 (118), 2-4.22-24.25-27) apresenta insistentemente a proclamação da eternidade da misericórdia e exalta, assim como na primeira leitura, as maravilhas realizadas por Deus.
         Como nos recorda o Papa Francisco, na bula de proclamação do ano da misericórdia: ‘Eterna é a sua misericórdia’: tal é o refrão que aparece no salmo, ao mesmo tempo que se narra a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da salvação. O fato de repetir eterna é a sua misericórdia, como faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o homem, não só na história, mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar misericordioso do Pai. 
        A segunda leitura (Ap 1,9-11a.12-13.17-19) anuncia a grandeza e a Glória do Ressuscitado: não tenhas medo! Sou aquele que vive para sempre. Na experiência mística de João o Senhor se apresenta como aquele que dá segurança ao cristão, não só porque Ele tem domínio absoluto sobre tudo, mas também porque participou da condição mortal do homem. Por sua morte e Ressurreição venceu a morte e tem poder sobre o mistério que ela representa. 
        O Evangelho (Jo 20, 19-31) apresenta a reconstrução do homem e do mundo: Novamente, Jesus disse: 'A paz esteja convosco.
Como o Pai me enviou, também eu vos envio'. E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos'.
         Ao soprar sobre os discípulos reunidos, faz relembrar a criação do mundo, onde Deus sopra sobre o barro da terra que agora toma forma e passa a se tornar um ser vivente. O sopro de Deus traz a vida. Jesus sopra sobre os discípulos e faz deles homens novos, dando a eles a missão de serem continuadores da ação de Cristo, perdoando os pecados, manifestando a misericórdia de Jesus. Jesus os confere a missão de se tornarem embaixadores do perdão e da misericórdia. A Igreja tem por missão recriar o mundo através da misericórdia e do perdão dos pecados.
        Logo após, é apresentada a figura de Tomé, que não se encontrava com os apóstolos no dia do encontro com o Senhor. Ante a narrativa destes sobre o novo fato acontecido, Tomé dá uma resposta de incredulidade:
        Mas Tomé disse-lhes: 'Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei'.
        Tomé demonstra a dificuldade de não basear sua crença nos testemunhos, mas sim na experiência empírica de ter de comprovar o que lhe fora comunicado, algo típico de nossos tempos marcados pelo cientificismo positivista. Tomé representa a mente fechada a novas e eficazes formas de conhecimento.
        No fundo, destas palavras sobressai a convicção de que Jesus já é reconhecível não tanto pelo rosto quanto pelas chagas. Tomé considera que os sinais qualificadores da identidade de Jesus são agora sobretudo as chagas, nas quais se revela até que ponto Ele nos amou. Nisto o Apóstolo não se engana. Como sabemos, oito dias depois Jesus aparece no meio dos seus discípulos, e desta vez Tomé está presente. E Jesus interpela-o: "Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!". Tomé se espanta tanto pela constatação de que o Senhor está vivo como pela forma com que sua debilidade e falta de fé é tratada: O Ressuscitado quer mergulhar as chagas da falta de fé de Tomé em suas chagas, em suas gloriosas chagas Tomé reage com a profissão de fé mais maravilhosa de todo o Novo Testamento: Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20, 28). A este propósito, Santo Agostinho comenta: Tomé via e tocava o homem, mas confessava a sua fé em Deus, que não via nem tocava. Mas o que via e tocava levava-o a crer naquilo de que até àquele momento tinha duvidado". O evangelista prossegue com uma última palavra de Jesus a Tomé: "Porque me viste, acreditaste. Felizes os que, sem terem visto, crerão". Esta frase também se pode conjugar no presente; "Bem-aventurados os que creem sem terem visto".  Que ver os sinais nos faça renovar a fé e a esperança. 
        O caso do Apóstolo Tomé é importante para nós pelo menos por três motivos: primeiro, porque nos conforta nas nossas inseguranças; segundo porque nos demonstra que qualquer dúvida pode levar a um êxito luminoso além de qualquer incerteza; e por fim, porque as palavras dirigidas a ele por Jesus nos recordam o verdadeiro sentido da fé madura e nos encorajam a prosseguir, apesar das dificuldades, pelo nosso caminho de adesão a Ele.
        Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.
Neste Domingo da Misericórdia, entremos nas chagas do Ressuscitado, e acolhamos a misericórdia em nossas vidas. Ele nunca se cansa de escancarar a porta do seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar conosco a sua vida. A Igreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A sua vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu convicto anúncio. Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia de grandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a todos no grande mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo. 
        Jesus Misericordioso, eu confio em vós.

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